Lídia Queiroz Silva Magnino*

Melanie Klein, uma corajosa clínica sem formação acadêmica, constrói sua obra com poderosa intuição prática trazendo desdobramentos fecundos a teoria e técnica psicanalítica, sem ignorar ou romper com Freud. Abre novos horizontes à psicanálise da criança, da psicose, do autismo, bem como aprofunda a análise de pacientes neuróticos e a analisabilidade de outras estruturas mentais, quando aponta as ansiedades psicóticas. Klein alarga o campo da psicanálise no diálogo com estética, sociologia, filosofia e política. Uma obra aberta e polissêmica.

Sua história de vida foi marcada por muitas perdas e vivências depressivas, como ser uma esposa infeliz e uma mãe deprimida. Analisada por Ferenczi e depois por Abraham, Klein se tornou a primeira mulher presidente da Sociedade de Psicanálise de Londres.

Preocupada com seu filho buscou as fontes da inibição simbólica, assim, descobriu que o parar de brincar é tão importante quanto o brincar. Constatou que a vida psíquica se orienta por afetos e que a ausência é presença de um objeto hostil.

No contato, ao atender crianças pequenas, percebeu que eram capazes de fazer transferência, sendo possível aplicar o método psicanalítico. Klein observou que o bebê é um cientista, um pesquisador nato, que testa suas fantasias inconscientes. Identificou um ego primitivo, um édipo e um superego precoce. Concluiu que falar de fantasia é falar de afeto, a partir disso cria a técnica de análise da criança.

Ela fez da psicanálise uma arte de cuidar da “capacidade de pensar”, destacando o papel central dos afetos e da dor psíquica, sendo a pulsão de morte o agente principal da simbolização. Segundo Klein, existe um pensar com emoções, em que, o afeto é o centro da vida psíquica. O afeto organizador e estruturante, dando significado ao movimento mental. Ela não dissocia o afeto do pensamento. Nós pensamos com símbolos e ele é essência da vida mental, não só representativo. O pensamento oferece uma consciência e organização de como o indivíduo se relaciona com o mundo.

Klein revoluciona a Psicanálise e o modelo de análise infantil, isentando-a de intenção pedagógica e intuindo a contínua atividade de personificação da criança, semelhante às associações livres e à mobilidade da angústia.

Ouvindo as crianças, notou a concretude e a importância dos espaços. Espaços no interior do corpo da mãe e da própria criança. A autora, então, faz uma “geografia da mente”. Um “lugar” como um “teatro da mente” onde existem presenças e acontecem fatos. Toda a vida psíquica se passa neste mundo interno, com objetos bons (gratificadores) e maus (frustradores) em relação, também, com a presença da fantasia inconsciente e das defesas conectadas a ela.

Sendo assim, o brincar da criança é trabalho; é como um fio que possibilita compreender o que se passa na sua mente.  O brincar é semelhante ao sonhar e pensar. É uma narrativa icônica que expressa suas fantasias inconscientes, sua estrutura do ego e suas identificações com os objetos.

Klein observa que a fantasia inconsciente é precoce e expressa pulsões psíquicas. Essas fantasias tem caráter de realidade e onipotência, influenciando as percepções e as relações da criança. Demonstra que o desejo de comer se torna a fantasia de ter incorporado o seio ideal que a nutre. Já o desejo de destruir, se transforma na fantasia de ter destruído o seio e ser perseguido por ele.

Para Klein, o superego é precoce, persecutório e tirânico. Ele não é uma instância monolítica, e sim, composto de uma profusão de objetos internalizados, impregnado de destrutividade e figuras internas cruéis. A criança teme as represálias da mãe contra seu corpo (ansiedades persecutórias entremeadas a sentimento de culpa e depressão). Ela observa sentimento de culpa em crianças pequenas e deduz um édipo precoce (sexto mês).

A criança nasce com um ego lábil e em desenvolvimento, sendo capaz de sentir ansiedade, elaborar mecanismos de defesa e estabelecer reações de objeto. Permeada pelas fantasias inconscientes, agrupa duas organizações psíquicas: a Posição Esquizo-Paranoide (PEP) e a Posição Depressiva (PD), cada uma com um tipo de ansiedade, mecanismos de defesas, relação de objeto e simbolismo. Uma veiculando e a outra como um balé.

Na Posição Esquizoparanoide, a ansiedade é paranoide e os mecanismos de defesa são: a cisão; a identificação projetiva (mecanismo para livrar o ego de angústias, evacuando para fora e para dentro do outro e de si mesmo); idealização e negação. Nessa posição, a relação de objeto é parcial, com imagens cindidas, sendo uma persecutória e outra idealizada. O tipo de simbolismo presente é a equação simbólica. A pessoa é vívida pela experiência, pelo imediato.

A outra organização é a Posição Depressiva em que a ansiedade é depressiva. Além das defesas da PEP, há também a reparação. Nessa posição, a relação de objeto é total, a pessoa é capaz de contextualizar a experiência, de pensar e ter memória. O sujeito é capaz de elaborar lutos e estabelecer bons objetos internos. Uma boa identificação com a mãe é a base para identificações benéficas posteriores e para estabelecer a boa relação entre os genitores. Prevalece o interesse e o amor pelo objeto, garantindo a saúde mental.

Klein dá ênfase na pesquisa do funcionamento pré-verbal e dos estados mentais primitivos onde prevalece a simultaneidade. Constrói um sistema de comunicação específico avaliando os efeitos da cisão e projeção por meio da linguagem. A linguagem é concreta, pictórica, como se fosse um “carnaval” no mundo interno, evocando imagens simples (pai mau, mãe boa), aglomeradas (papai polvo voraz), grotescas (seio dentado, venenoso, explosivo); descrevendo os objetos parciais internalizados, revelando as projeções das tendências sádico-orais sentidas como vivas dentro do corpo do bebê. Por meio de metáforas icônicamente processadas, Klein preenche as lacunas entre a simultaneidade da pré-narrativa (ainda não simbolicamente representada) e os conteúdos do universo pré-verbal (fragmentado e assustador) em potencialmente pensáveis e comunicáveis. Cria a visualização do mundo interno da PEP e PD.

As angústias primitivas, como sadismo, inveja, voracidade e as alterações nos objetos interno e externo, propõem mediação através da interpretação na transferência, abrandando as angústias e reduzindo a distância entre fantasia inconsciente e realidade externa. A interpretação torna presente o mundo interno com as distorções, os ataques, as fantasias corporais mais primitivas, abrandando a angústia de morte subjacente. O analisando se sente compreendido e aliviado.

Sendo assim, Melanie Klein modifica o modelo reconstrutivo histórico Freudiano da transferência para a atualidade, destaca as comunicações transferenciais no aqui e agora. Enfatiza a importância da firmeza do setting para permitir que as fantasias mais primitivas se manifestem através das identificações projetivas influenciando a mente do analista.

O conceito de Identificação Projetiva modifica o conceito de Transferência e Contratransferência. A projeção é dentro do objeto com um afeto. Os objetos dentro da mente oferecem um modelo corporal de funcionamento mental. O analisando evoca a estrutura do analista. A relação analista-analisando é esclarecida pela compreensão das identificações projetivas que enriquece a contratransferência, funcionando como um radar.

 

Lídia Queiroz Silva Magnino

Membro Associado da SBPSP, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Coordenadora e Docente do Curso de Especialização de Teoria Psicanalítica e Docente do Curso de Medicina da Universidade de Uberaba.

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