Maria Guineza Bolzani Borges 

Psicóloga Especialista em Psicoterapia Psicanalítica 

pelo Núcleo de Psicanálise de Marília e Região

     Diariamente na atuação clínica, ouvimos de cada sujeito em nossas poltronas e divãs, uma multiplicidade de conflitos, exigências, desejos e sofrimentos. Tenho escutado e percebido que o sofrimento vivenciado pelas pessoas está relacionado às vivências afetivas ligadas a si mesma, aos grupos sociais e aos impactos causados em suas vidas. 

     As mais diversas queixas se apresentam e com isso, a necessidade de uma compreensão abrangente, olhando não apenas para o individual – olhar este fundamental para a complexidade de um sujeito, que é um todo em si mesmo – mas também para o social em que estamos inseridos. 

     Para isso, veremos as principais diferenças entre a sociedade moderna e pós moderna, bem como a compreensão acerca do ambiente e desenvolvimento emocional do sujeito, relacionando com a busca incessante do prazer que gera angústia e sofrimento, uma vez que a dificuldade em lidar com restrições e frustrações parece perturbar o sujeito contemporâneo. 

     Winnicott já afirmava que para existir saúde mental, é necessário um ambiente suficientemente bom, que “é aquele que facilita as várias tendências individuais herdadas, de tal forma que o desenvolvimento ocorra de acordo com elas” (Winnicott, 1967, p.22).  

     Tendo em mente que o psiquismo do sujeito influencia o modo como ele percebe e age na sociedade, podemos entender que a psicanálise é social, uma vez que somos formados pelos aspectos positivos e negativos que o ambiente nos proporciona e como cada indivíduo vivencia e reage aos estímulos, excessos e faltas apresentadas.  

     Ao nos depararmos com esse pensamento, podemos começar a identificar um grande conflito que surge no discurso do indivíduo, que é a dificuldade na harmonia necessária entre o dever e o desejo, entre a culpa e a realização, entre a insatisfação e a satisfação, que tem como consequência o aumento de angústias. 

     Há quem diga que vivemos ainda a sociedade moderna, ou já a pós moderna. E o fato é que atualmente estamos passando por um período de transição, em que uma série de construções sociais tem sido revistas, ressignificadas e modificadas.  

     A Modernidade, de acordo com Marion Minerbo (2019, p.203) se caracteriza pela “solidez de grandes instituições – refiro-me a: família, educação, política, religião, – as quais têm o poder de determinar, com exclusividade, a maneira possível e desejável de pensar, sentir e agir. Há o certo e o errado, o bom e o mau.” E que as pessoas deveriam, então, se encaixar nessa proposta de vida e valores absolutos e universais instituídos.  

     Essa transição e as características atuais, nos encaminha para outras definições. Um constante movimento para que as normas da “boa moral” sejam flexibilizadas e, consequentemente, produza menos sofrimento para aqueles que não se encaixam àquilo que está instituído há tanto tempo, em uma sociedade Pós moderna. 

     Pensemos, então, no contexto social atual: exigência de produtividade ilimitada, em uma sociedade que não aceita pausas; tudo funciona e roda o tempo todo, desde enormes indústrias, até o aparelho celular que hoje é uma extensão do próprio sujeito. Segundo descreve o sociólogo Zygmunt Bauman (2001), a sociedade pós moderna, tem características líquidas: sem forma específica, prontas a adaptações, mudam, transbordam e não se atém muito ao tempo e espaço que ocupam, apenas de forma temporária e momentânea, sem bordas e sem contorno – uma sociedade fluida. 

     Os ambientes de trabalho passam a não ter mais horários definidos; mercados, farmácias, conveniências, bares, entre outros, tudo funcionando sem pausas, redes 24 horas a disposição dos consumidores. O trabalho que termina na empresa e continua em casa, disponibilidade de contato nas folgas, nas férias, a dois toques no celular, distância já não tão mais relevante, – “Ora, se você não faz, substitui-se por quem faz” – uma sociedade que não pode descansar, troca-se turnos, troca-se saúde física e mental por produção e visibilidade. Uma era de competitividade, de multipolarização, onde o sujeito precisa se desenvolver cada vez mais e se (re)afirmar o tempo todo, para manter “seu lugar” na sociedade, onde vence aquele que “parece o melhor”. 

     Além disso, fica claro uma condição contemporânea de intolerância geral. Todos têm direito ao pensamento crítico e a viver a vida como quiser (desde que não invada o espaço e direito do outro), porém, com a disseminação das redes sociais, a privacidade tem ficado em segundo plano, é quase uma utopia, uma vez que pessoas se sentem no direito de criticar e fazer apontamentos, muitas vezes carregados de ódio, sobre como o outro pensa e vive. É o eu se impondo ao outro, ao nós, cada vez mais individual na busca da perfeição existencial. 

     Porém, o que temos visto nos últimos anos, é a impossibilidade de atender a essas exigências, o que contribui para a evitação dos vínculos de afeto, gerando sofrimento e solidão. O que nos leva a refletir: em que medida a evolução da sociedade perturba o sujeito? 

     Para explicar de maneira muito breve e compactada, Freud, a partir de 1920 descreve na teoria da segunda tópica, a noção da existência de três elementos psíquicos que interagem e compõem a formação da personalidade humana, que são o Id (instintivo e pulsional, busca a satisfação imediata de desejos a qualquer custo; quando não satisfeitas imediatamente, geram sensação de ansiedade, tensão e desprazer), o Ego (cuja função é equilibrar as imposições do id, ordens do superego e as exigências da realidade externa) e o Superego (consciência moral como resultado da castração; são as leis e normas internalizadas para aprimorar a civilidade dos comportamentos mais complexos).  

     Com base nesta premissa, compreendemos que a personalidade é um conjunto dinâmico de estruturas que vão se modificando e evoluindo ao longo da vida de cada pessoa. Essas estruturas são resultado de características inatas e sociais que se atrelam umas às outras e resultam no modo individual e subjetivo de cada sujeito pensar, falar e se comportar.  

     Segundo Marion Minerbo (2019, p.215), “a psicopatologia contemporânea tem a ver não só com o desamparo identitário, mas também com algum tipo de excesso pulsional”. Ela nos traz ainda a ideia de que os adoecimentos psíquicos da pós modernidade estão relacionados tanto com o Eu, quanto com o Self (sentimento de identidade, de ser “eu mesmo”), e elege três principais categorias do adoecimento contemporâneo: os psicossomáticos; o vazio, o tédio e a apatia; e, adicções e compulsões. 

     Uma vez que cada sujeito funciona de maneira subjetiva com a castração, fantasias e realidade que se apresenta, temos uma infinidade de modos de agir em uma sociedade que exige a abdicação da satisfação de desejos para que as relações possam acontecer.  

     Considerando que o funcionamento social atual tem deixado as bordas, os limites e regras sociais sem muita definição – especialmente em decorrência do desenvolvimento das tecnologias -, cada um de nós precisa construir e/ou reconstruir nossa própria identidade, que esteja de acordo com a realidade interna e externa, mas sem perder a autenticidade de ser quem somos. 

     Desse modo, a psicanálise precisa estar em constante contato com as diferenças, se articulando com a multiplicidade de conflitos na relação do superego com os ideais individuais e da cultura, lidando com a mudança continuamente.  

     Como nos afirma Marion Minerbo, “cada momento histórico tem suas formas de ser e sofrer predominantes. É assim e pronto” (Minerbo, 2019, p. 229). De forma que cabe a nós, profissionais da psicanálise, a compreensão da sociedade, para atender as demandas que surgem na clínica, adaptando o setting de forma pertinente à realidade, uma vez que as características de atendimentos nos últimos anos têm mudado também. 

     O fator principal para o sucesso de uma análise seria então, a vinculação e interação entre analista-analisando, onde cada um é afetado pelo outro mutuamente, de modo que nesta interrelação possa existir um espaço onde a comunicação ocorre de maneira fluida, capaz de produzir interpretações, insights e elaborações que sejam capazes de gerar transformações na vida do sujeito. Em outras palavras, “o objeto psicanalítico passa a ser a dupla que se relaciona horizontalmente, em intimidade, assimetria e fertilidade, e o acesso ao mental se faz pela via intersubjetiva.” (Perrini, 2021, p.117). 

     Por fim, podemos concluir então, que além de considerarmos as técnicas postuladas pelos psicanalistas clássicos, é igualmente relevante a consciência e clareza da importância do estar junto, da possibilidade de criação, (re)construção e (re)significação do psiquismo de cada sujeito com base na verdade, realidade e possibilidades de experiências emocionais que só podem ocorrer na sala de análise, já que é na experiência emocional da dupla que o desafio do fazer psicanalítico tem sentido transformador e curativo.  

REFERÊNCIAS 

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001. 

FREUD, S. (1923-1925). O Ego e o Id e outros trabalhos. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

FREUD, S. (1930) O Mal Estar na Civilização. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

MINERBO, M. Novos diálogos sobre a clínica psicanalítica. São Paulo: Blucher, 2019, 288p. 

PERRINI, E. Recordar, repetir e criar na clínica psicanalística: do lero lero à pancada de arrepio. In: Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 55, n. 1, 2021, p.115-130. 

WINNICOTT, D. Tudo começa em casa. São Paulo: Ubu Editora, 2021, 336p. 

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