Maria Angelica Amoriello Bongiovani
Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
e Membro do Grupo de Estudos de Psicanálise de Marília
“Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda” (Nise da Silveira)
Pensar sobre a saúde mental nos leva a sonhar sobre a tão fundamental e essencial cultura de prevenção, os seus primórdios e a contemporaneidade. Em toda essa complexidade, envolvendo o psiquismo, cuidar da saúde mental de forma preventiva é o ideal. A prevenção primária, consiste em evitar a ocorrência do problema alvo, isto é, diminuir a incidência, prevenindo, antes que a doença-problema, se instale. Podemos pensar como exemplo, no suicídio, gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, transtornos mentais, drogadição e muitos outros.
Testemunhamos com frequência, desdobramentos relativos à falta de investimento em saúde pública, cito como exemplo o caso de adolescentes invadindo escolas com armas de fogo e assassinando em série, crianças e professores indefesos. Quantas situações turbulentas e conflituosas poderíamos ter evitado se houvesse uma procura mais acentuada e frequente, pelos profissionais de saúde mental. Buscar ajuda é um sinal de força e não de fraqueza. O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman, enfatiza com relação às crianças e jovens adolescentes que, “Instrumentos como leitura, informação, arte, cultura, política e trabalho social podem torná-los críticos em relação às facetas dessa sociedade, esse “mundo líquido”, em que nada é feito para durar, para ser sólido”.
Caminhando pelo viés da saúde mental em direção aos aspectos primitivos, encontramos na forma de rolo de papiro, monumentos e os livros da Bíblia, revelando que os antigos egípcios, árabes e hebreus acreditavam que o comportamento anormal era decorrente de possessão por forças sobrenaturais, como deuses irados, maus espíritos e demônios. A abordagem típica para expulsar os demônios era usar encantamentos, preces e diversas formas de punição física, como apedrejar ou açoitar, eram defendidas como um meio de forçar os demônios para fora de uma pessoa possuída.
A primeira tentativa de explicar o comportamento anormal em termos de causas naturais, ao invés de sobrenaturais, ocorreu quando Hipócrates (460-377 d.C.), conhecido como o pai da medicina moderna, ensinou que o cérebro é o órgão responsável pelos transtornos mentais. Ele também sugeriu que o comportamento era governado pelos níveis relativos de quatro humores (líquidos) no corpo: bile negra, bile amarela, fleuma e sangue. Por exemplo, ele acreditava que o excesso de bile negra causava depressão e que o excesso de bile amarela estava associado à tensão, ansiedade e instabilidade pessoal. Hipócrates carecia de técnicas científicas para verificar sua explicação, mas sua abordagem nos iniciou no caminho de melhor investigar aspectos relativos à doença mental. Durante a Idade Média (500-1500 d.C.), a religião tornou-se a força dominante e a abordagem naturalista de Hipócrates foi, essencialmente, abandonada, e as doenças mentais foram consideradas uma consequência de possessão demoníaca.
Por volta do final da Idade Média, a política da igreja oficial ditava que as bruxas fossem destruídas e muitas vezes, queimadas vivas. Depois que os indivíduos perturbados foram reconhecidos como pacientes, o passo seguinte em promover atendimento humanitário envolveu melhor as condições nas quais os pacientes viviam. O famoso Philippe Pinel (1745-1826), em 1792 ordenou que os pacientes de seu hospital, em Paris, fossem desacorrentados e que os alojamentos fossem renovados para se tornarem mais agradáveis. Da corrente ao continente, de Sigmund Freud que é o pai da psicanálise à Bion, chegamos em “Uma teoria do pensar”, que é essencial para a expansão e transformação sobre o enfrentamento da realidade:
“Se a capacidade de tolerar frustração é suficiente, o “não-seio” no interior torna-se um pensamento e desenvolve-se um aparelho para “pensá-lo”. Isto dá início ao estado, descrito por Freud em seu artigo, “Os dois princípios do funcionamento mental”, no qual a predominância do princípio de realidade é sincrônica ao desenvolvimento de uma capacidade para pensar e assim transpor o fosso de frustração entre o momento em que uma necessidade é sentida e o momento em que a ação apropriada para satisfazer a necessidade culmina em sua satisfação. Assim, a capacidade para tolerar frustração capacita a psique a desenvolver pensamentos como um meio de tornar a frustração tolerada ainda mais tolerável (Bion,1961).
A saúde mental transforma-se, com as ideias geniais de Freud e sua prática clínica (talking cure, chimney sweeping). Em berço esplendido somos gratificados com a descoberta da Psicanálise. A sua experiência clínica o levou a formular a hipótese de que a mente humana é semelhante a um iceberg – a maior porção está completamente encoberta. A vasta parte oculta da mente é chamada de inconsciente e ela contém desejos, medos e conflitos poderosos que exercem uma forte influência sobre o comportamento humano.
Freud acreditava que as memórias e conflitos mais importantes, guardados no inconsciente são aqueles vividos no início da infância. Para ele, o histérico sofre sobretudo, de reminiscências. São lembranças vagas e quase apagadas, alguma coisa que se guardou na memória, inconscientemente. O mais importante é que essas lembranças do passado, carregadas de afeto, continuam controlando nosso comportamento no tempo presente. E isso afeta o nosso futuro. A dor mental precisa ser cuidada e esteticamente, manuseada. A cura não vem do esquecer, vem do lembrar sem sentir dor.
Finalizando, a psicanálise, desde que operada segundo os requisitos básicos prescritos por Freud – que permitem a emergência de instrumentos essenciais para o trabalho analítico ,como: a instalação de vínculo transferencial, o estímulo a associações livres, a liberdade para fantasiar, a abstinência de compreensão racional, a presença de angústias de separação e assim por diante – demanda a presença de um psicanalista, ou seja, de um outro que tenha se preparado para introjetar um setting abdicado de desejos pessoais, com exceção do desejo de psicanalisar (JUNQUEIRA FILHO, 2023).
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
BION, Wilfred R. Uma teoria do pensar. In: SPILLIUS, Elizabeth Bott (Org.). Melanie Klein hoje, desenvolvimentos da teoria e da técnica Vol. 1: Artigos predominantemente teóricos. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 185-193.
FREUD, Sigmund; Breuer, Josef. Estudos sobre a histeria: 1893-1895. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
JUNQUEIRA FILHO, Luis Carlos Uchôa. O estranho encontro entre o eu e o outro: sobre os destinos da dor mental. São Paulo: Blucher, 2023.