Dia do Psicanalista

Julia G. B. V. Boselli

Sigmund Freud, 190x210 cm, Acrylic On Canvas, 2015-01, Voka

Sigmund Freud, 190×210 cm, Acrylic On Canvas, 2015-01, Voka

Esse mês comemoramos o Dia do Psicanalista. Profissão que escolhi e escolho todos os dias.

Freud tinha como habito escrever após seus atendimentos clínicos, o que, por consequência gerou uma grande obra epistemológica.

 Hoje, inspirada por ele, vou escrever após um dia de atendimentos também. Deixo aqui uma pequena contribuição para não passar em branco essa data. Afinal, de branco e pálido não tem nada essa tal de psicanálise.

Como terapeutas sabemos o nome de quem iremos atender e até mesmo o horário do paciente. Mas, a realidade é que nunca sabemos quem entrará por aquela porta. O inconsciente não segue uma lógica cronológica e organizada.

Abrimos a porta e com nossa atenção flutuante encontramos angustias primitivas. Nos deparamos com aquela criança que o paciente utiliza de várias defesas para esconder. Esconde o desamparo vivenciado concretamente ou simbolicamente no passado e que até hoje ressoa. 

Os sintomas dessas angústias estão aqui, no presente. O desamparo é vivido e atuado pelo próprio paciente, que repete na tentativa de elaborar o conflito. O paciente então trava uma luta (processo de análise) no lugar e horário apropriado para isso, a clínica.

O termo luta não me refiro no sentido de competição ou guerra, e sim, algo trabalhoso que envolve uma relação de intimidade em que o paciente pode recorrer à mente do analista.

Sem as lentes do psicanalista veríamos um adulto deitado no divã relatando seu dia; atrás dele, outro alguém ouvindo e apenas ouvindo. A verdade é que nós terapeutas estamos ali, fazemos parte ativamente da narrativa. Vivenciamos transferência e contratransferência durante toda sessão e usamos de diversas técnicas para maneja-las aproximando cada vez mais o paciente de seu desconhecido (inconsciente). 

O terceiro analítico (termo de Thomas Ogden) que nasce dessa dupla paciente-terapeuta é intenso, colorido, dolorido e até mesmo estético. As cores são tão vivas que frequentemente o psicanalista vive as identificações projetivas do paciente.

 O paciente, mesmo racionalmente entregue ao processo analítico, em sua ambivalência, luta para não ser amparado, pois é o modo que conhece até então. Como bem nos ensina Klein não podemos pensar em nada mais humano do que nossa dificuldade em amparar nossos desejos mais hostis.

Mas afinal porque no dia 6 de maio é comemorado o Dia do Psicanalista?  

Em 6 de maio de 1856 nasce em Freiberg (atual República Tcheca) Sigmund Freud neurologista criador da psicanálise. Peter Gay, seu biógrafo, o descreve como um arqueólogo da mente.

Freud cria o método psicanalítico que consiste em evidenciar significado inconsciente das palavras, ações e produções imaginarias (sonhos, fantasias e delírios) de um sujeito. (Definição de Laplanche e Pontalis)

Então não bastaria estudarmos sobre a psicanálise? Por que precisamos do psicanalista? Em uma das cartas que trocadas com Fliess (colega médico e confidente) Freud afirma: “A verdadeira autoanalise é impossível, do contrário não haveria doença.”

Seria impossível travar uma luta com nós mesmos para quebramos nossas próprias repressões. Quanta vezes nos faltariam coragem de olhar ou confrontar? Tenderíamos ao princípio de nirvana sempre que possível.

E sim, é mais fácil ter coragem se temos o psicanalista preparado para estar nesse caminho tortuoso do desenvolvimento emocional. O terapeuta faz muitos esforços como estudo, supervisão e analise pessoal de alta frequência, para que esse caminho, ainda que em companhia, seja individual e próprio do sujeito. Sem gerar dependência ou estar munido de julgamentos morais.

“Um dia, quando olhares para trásverás que os dias mais belos foram aqueles em que lutaste.” Freud

Feliz dia do Psicanalista aos terapeutas, mestres, supervisores e colegas.

Julia G. B. V. Boselli CRP:06/136769

Psicóloga clínica; Membro filiado Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo -SBPSP; Membro filiado ao NPMR – Núcleo de Psicanálise de Marília e Região; Graduada em Psicologia pela Universidade de Marília (SP) – UNIMAR;  Especialista em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pela Faculdade de Medicina de Marília – FAMEMA.
Realizou Curso de Aprimoramento em Psicoterapia Psicanalítica pelo Núcleo de Psicanálise de Marília e Região.
Auxiliar Comissão de Cultura do NPMR;
Auxiliar Comissão de Avaliação de novos agregados NPMR;
Auxiliar Comissão do Serviço de Orientação e Encaminhamento (SOE) NPMR.

Passado, presente e futuro

Alfredo Menotti Colucci*

A Psicanálise implantou-se formalmente em Marília e região no final da década de 1960, com atividades que se desenvolviam pelo Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Marília – FAMEMA, sob minha coordenação, com uma forte influência psicanalítica trazida da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP, propiciando o desenvolvimento de trabalhos, pesquisa e estudo da Psicanálise. Naquela época, Marília era um centro universitário com a presença de professores de reconhecimento internacional ligados à FAMEMA como a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília – USP.

O currículo da FAMEMA foi divulgado em Congressos encontrando ressonância nos órgãos governamentais. Foi quando, no início de 1973, foi firmado o Convênio com o Ministério da Saúde com respaldo da Organização Mundial da Saúde, criando-se o Centro Integrado de Saúde Mental de Marília. que integrou a FAMEMA a todos os serviços de saúde mental, tanto municipais e estaduais, como federais.

Esse foi um programa que repercutiu de forma positiva na academia brasileira e a FAMEMA foi construída sobre esse alicerce. Penso que essas origens a fazem ser, se não a única, uma das principais no cenário nacional pela dimensão da saúde integral do HOMEM.

Alguns anos antes, em 1968, iniciei minha formação psicanalítica e encontrei na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo uma entidade comprometida com a difusão da Psicanálise, herança de Durval Marcondes e Virgínia Bicudo. Incorpora-se nela o espírito expansionista dos bandeirantes, e o pioneirismo em aderir ao criativo, o que resulta na pujança de seu crescimento. A inclusão da análise concentrada foi decisiva para que a Psicanálise se ampliasse para o interior. Entretanto, em 1982, a IPA recomenda o impedimento de se iniciar análises concentradas, o que exigiu uma mobilização tanto da ABP (atual FEBRAPSI) como da SBPSP, e iniciaram-se jornadas científicas para permitir que argumentos consistentes pudessem ir contrapondo-se aos da IPA. Cito alguns dos autores desses trabalhos: Alfredo Menotti Colucci, Deodato Curvo de Azambuja, João Carlos Braga, Luiz Carlos Menezes, Marcio Giovanetti, Roosevelt Cassorla e outros, que foram decisivos nesse processo. Além da participação de Plinio Montagna junto à IPA para a aceitação da análise concentrada, considerando que, sem esse modelo, seria impossível o desenvolvimento da Psicanálise no Brasil.

    

Em 1992, é criada na SBPSP a Comissão do Interior sob a coordenação de Odilon Franco Filho. Durante oito anos, até 2000, quando pode ser instalada a Secretaria do Interior, um trabalho de base foi realizado por mim, José Pavan, Regina Colucci, Maria Auxiliadora Ribeiro, Cibele Brandão, Miguel Marques, Tais Marques e Celina de Melo e, reunindo-nos na Clínica Guanas, demos prosseguimento à nossa formação psicanalítica na SBPSP e trabalhamos na difusão da Psicanálise. Tal era a repercussão, que a clínica era chamada de “Sergipinha”, por propiciar cursos e seminários clínicos para muitas cidades da região, uma alusão à Rua Sergipe, então sede da SBPSP.

A produção de trabalhos psicanalíticos também foi marcante, o que estimulou o lançamento de uma revista que, por seu conteúdo psicanalítico, recebeu o nome de Revista do Interior com duplo significado: os analistas residentes no interior e o tema do interior do Homem. A revista foi, na realidade, uma nova edição de uma revista produzida na década de 1970.

A Clínica Guanas foi insuficiente para suportar o crescimento do grupo, mas como existia nela um Centro de Estudos Psicanalíticos, foi possível reproduzi-lo na instalação do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região (NPMR). Na época, esse núcleo e o de Curitiba foram oficializados pela FEBRAPSI, estimulando a instalação dos Núcleos pela Secretaria do Interior na gestão de Márcio Giovanetti (2000), sob minha coordenação. Logo, 16 Núcleos da Secretaria do Interior estavam ativos. Nessa época, tal qual um caixeiro-viajante, foi possível levar a Psicanálise para cidades do estado de São Paulo, bem como outros estados do Brasil. Minha participação em duas gestões das diretorias da SBPSP e da FEBRAPSI foram importantes para trazer subsídios para Marília e sempre estimulei a SBPSP a continuar sua vocação bandeirante. 

  

Em final de 1994 instala-se oficialmente o NPMR, o que marca o início das atividades institucionalizadas em Marília e Região. Destaco dois eventos: I Encontro do NPMR, em 1995, e o II Encontro do NPMR, em 1997 – Entrelinhas. Dessa forma, construiu-se o berço para a Diretoria Regional na SBPSP, que continuou estimulando novos Núcleos. Essa história pode ser acompanhada no livro “Caminhos cruzados, sonhos compartilhados: Inserção da Psicanálise em Marília e Região” que se encontra no acervo da SBPSP, propiciando investigar os fatores que são necessários, mas não suficientes, para a inserção da Psicanálise em uma região ou mesmo sua difusão e/ou sua divulgação.

Hoje o NPMR, pelo seu crescimento, número de membros e atividades, busca a passagem para Grupo de Estudo ligado à IPA.

Pesquisa em Psicanálise

Com a vinda de Bion na década de 1970, e estimulado por Judith Andreucci, Lygia do Amaral e Frank Phillips, desenvolvi investigações no início das relações mãe-bebê-pai, tendo produzido vários trabalhos, sendo o de maior investimento, o realizado por uma equipe multiprofissional composta por psicanalistas, pediatras, ginecologistas, estatísticos e filósofos, que durou 5 anos na observação de gestações, período perinatal, parto e puerpério de 33 casais grávidos.  Pesquisa subvencionada pela RAB – IPA, aprovada em 23 de junho de 2000.

Uma proposta para o futuro

A pesquisa sobre análise concentrada permitiu que a SBPSP ampliasse sua expansão. Hoje, com a introdução do sistema de cursos, seminários, supervisões e análises on-line, novos estudos precisam ser realizados, pois esta forma de trabalho, embora importante, ainda não apresenta experiências suficientes a respeito de sua repercussão na formação psicanalítica. Uma vez alicerçada, e aperfeiçoando-se esta aquisição, somada à atualização da SBPSP pelo sistema Virgínia, poderia alcançar áreas e ampliar a expansão da Psicanálise na Grande São Paulo e no Estado, continuando a ser norteada pelo espírito bandeirante.

Deixo meu agradecimento a todos que trabalharam nessa empreitada, com destaque aos funcionários da SBPSP.

Crédito: Aleksey Odintsov, Abstract Twisted Waves. 

Alfredo Menotti Colucci

É psicanalista, membro efetivo, docente e ditada da SBPSP e Fundador do Núcleo de Psicanálise de Marilia e Região. 

Missão do Corpo

Victoria R Béjar*

Este título não é meu, ouso pedir licença ao nosso grande poeta Carlos Drummond de Andrade, que o deixou, entre outras poesias, para publicação póstuma: Farwell.

O grande poeta na reta final da vida, reúne de modo mais convincente, suas vivências e percepções corporais e as transforma em poesia. Creio que após os sessenta anos, o corpo volta a se impor de modo cada vez mais evidente. Limitações, inúmeras transformações, dos órgãos, da aparência. O corpo nos remete ao desamparo e necessidade de cuidados quase como quando éramos bebês.

Mas essa descrição caberia num percurso de vida natural e sem intercorrências marcantes. Não é o que vivenciamos há um ano, uma pandemia, o coronavírus. Além de atingir o mundo inteiro, é atemporal. Corpos com qualquer idade são assaltados pelo coronavírus que num afã destrutivo, rapidamente pode destruir qualquer corpo, de toda idade e levá-lo à morte.  Diga-se de passagem, morte difícil, dolorosa, por sufocação, pulmões que se cristalizam e perdem sua condição de expansão! Falência cardiorrespiratória! Mas observamos que a luta pela sobrevivência empreende grandes esforços.  Dias de UTI, tubos na traqueia, veias, bexiga, enormes doses de corticóides, analgésicos, anestésicos, rebaixamento ao nível inconsciente para suportar as dores e os desconfortos, e tentar se salvar da invasão do inimigo cruel.  A enorme destrutividade contida num diâmetro de 40 nanômetros!

Convivemos com psicanalistas relutantes em aceitar que o corpo faz parte de nossa estrutura psíquica.  Embora Freud, em “O ego e o id” de 1924, já apontasse para a existência de um ego corporal. Aprofundou as relações entre as instâncias psíquicas e as profundezas do soma em 1933, na monumental conferência “A dissecção da realidade psíquica.” Segundo Freud, “o id tem em um dos seus extremos as influências somáticas”, e que o ego e o superego, por sua vez, estejam enraizados no Id.  Assim sendo, o aparelho psíquico encontra-se enraizado no soma.

Porém, muitos o admitem como abrigo do funcionamento psíquico arcaico. Provavelmente, a psicanálise infantil foi quem abriu as portas para que o corpo fosse notado, embora não fosse esse seu objetivo. Na década dos anos 1960 em Paris, Pierre Marty e colegas psicanalistas, que atendiam como clínicos em hospitais gerais, observaram em muitos pacientes que apresentavam patologias somáticas, um tipo característico de pensamento e de empobrecimento afetivo, que denominaram pensamento operatório e depressão essencial. Desde aí foi fundada em Paris a atual escola de psicossomática psicanalítica Pierre Marty. O fundamental desta abordagem é considerar corpo e mente unidos, como partes de um mesmo território, ao contrário da teoria cartesiana, que domina o ponto de vista médico e de outras ciências, que considera corpo e mente como dois territórios diferentes que se influenciam.

Para a medicina e outras ciências, o corpo é formado por complexos aparelhos e funcionamentos que sustentam a vida, mas caso sejam danificados, podem levar a graves consequências, até a morte. A partir desse enfoque, as questões psíquicas não são consideradas como possíveis causas de sérias doenças corporais.

Portanto, podemos concluir que é no corpo que os alicerces da vida psíquica se encontram, no qual se assentam as inscrições pré-verbais, formadas pelos estímulos recebidos dos nossos sentidos, principalmente visuais e auditivos. Além desses sentidos temos terminações proprioceptivas distribuídas no maior órgão do corpo humano: a pele que nos envolve.  Tudo que nos atinge deixa impresso sua marca, nos tempos mais iniciais da vida e por que não dizer, até mesmo na vida intrauterina. No desenvolvimento psíquico essas inscrições ou marcas são chamadas representações coisa. Expressam-se como imagens, sons, sem palavras nas fantasias, nos sonhos, nos devaneios. Mas ao receberem um nome se transformarão em representações palavra, que são os elementos utilizados na construção dos pensamentos. Formam as redes representacionais que nos permitem tecer associação de ideias e elaborar pensamentos dos mais simples aos mais complexos.

Outra questão fundamental para a formação do aparelho psíquico  é a relação do bebê com o ambiente, ou melhor dizendo, com a figura materna ou com quem exerça essa função. A pessoa que cuida do bebê influencia seu esperado desenvolvimento psíquico, se puder exercer a “função materna”. A função materna, além de prover a alimentação, funciona como um escudo protetor, protegendo o bebê do grande montante de estímulos internos e externos que o atingem. A função materna digere e organiza os estímulos, para depois devolvê-los ao bebê, que pode então recebê-los e contê-los.

É no corpo a corpo mãe-bebê, nos seus braços, no seu colo, olhos nos olhos, nas carícias, no aconchego, nas palavras sussurradas pela mãe, que o bebê encontra conforto, calma e aconchego repetidos. Esse aspecto da função materna é chamado de libidinização do corpo do bebê, a qual o imanta com alto grau de investimento afetivo materno. A função materna proporciona vários acréscimos ao corpo somático, transformando-o em um corpo com energia vital, a energia pulsional. A vida pulsional é uma mescla ligada de forças de vida e forças de morte, que colabora no percurso pelas diversas etapas do desenvolvimento. Assim, alcança sua subjetividade e consegue galgar o ápice do desenvolvimento, da construção mais sofisticada do ser humano: a vida psíquica.

Nos primórdios da vida, para o bebê, a mãe e ele são uma mesma pessoa, ela faz parte dele, não é outra pessoa, mas ele próprio. O investimento afetivo da mãe no bebê é responsável pela organização das forças internas, dos instintos de vida e de morte que se ligam e são fonte de energia vital. O tolerável jogo presença/ausência materna, lança no bebê os alicerces da capacidade de sonhar, por meio da realização alucinatória do desejo, que cria o peito na mente do bebê enquanto ele não chega. O encontro do peito alucinado com o peito real gera no bebê a fantasia de que o peito é criação dele.   E a constatação de que a mãe é um outro ocorre graças à possibilidade de colocar dentro de si quem se encontrava fora. Poder transferir da realidade externa para a realidade interna a presença materna.

O interessante é pensar que o corpo que nasce somático, regido por aparelhos e funções, nasce carne e sobrevive graças à manutenção saudável de seus complexos funcionamentos. Mas, é graças ao vínculo afetivo com a mãe, que os arcabouços psíquicos se inserem e se enraízam no corpo, constituindo o funcionamento mental arcaico. A construção do aparelho psíquico se dá como uma construção gradual que atravessa etapas cada vez mais elaboradas, apoiada a par e passo com os processos orgânicos, mas que, principalmente, depende do encontro fundamental com o outro.

A presença do outro é essencial durante toda a vida. Por meio de um processo sofisticado e que leva tempo, o bebê consegue pouco a pouco se dar conta que ele e a mãe são diferentes, são duas pessoas. A constituição da subjetividade, do se tornar si mesmo, é impulsionado pelas aquisições advindas do complexo desenvolvimento corporal, mas depende fundamentalmente da saudável estruturação psíquica, dos avatares do encontro com o outro e da firmeza do vínculo afetivo significativo. É impulsionado pelo esforço que as forças de vida derivadas dos instintos e das pulsões lhe impõe. Viver é a regra. Ser impulsionado para estruturas cada vez mais complexas é a norma.

É por isso que o corpo da psicanálise não se trata do corpo somático em si, mas dele deriva, é formado por aquisições afetivas sofisticadas que constroem o aparelho psíquico. Portanto, se trata de algo diferente e mais complexo do que o corpo somático em si mesmo. Vai além da carne. Atinge a alma. É um corpo dotado de emoções, afetos, brilho, de capacidade de pensar, de sonhar, de amar. É um corpo libidinal, narcísico, pulsional. Somos seres humanos que habitamos em nossos próprios corpos e enfrentamos o desafio de viver todas as possibilidades. Seres capazes de transformar as provas, as frustrações e as dores em desafios; embora muitas vezes tropeçamos e caiamos, podemos nos levantar enriquecidos pela experiência. 

Vamos agora nos enebriar na inspiração poética  criada por Carlos Drummond de Andrade sobre o corpo.

Missão do corpo

Claro que o corpo não é feito só para sofrer,
mas para sofrer e gozar.
Na inocência do sofrimento
como na inocência do gozo,

o corpo se realiza, vulnerável
e solene.

Salve, meu corpo, minha estrutura de viver
e de cumprir os ritos do existir!
Amo tuas imperfeições e maravilhas,
amo-as com gratidão, pena e raiva  intercadentes.
Em ti me sinto dividido, campo de batalha
sem vitória para nenhum lado
e sofro e sou feliz
na medida do que acaso me ofereças.

Será mesmo acaso,
será lei divina ou dragonária
que me parte e reparte em pedacinhos?
Meu corpo, minha dor,
meu prazer e transcendência,
és afinal meu ser inteiro e único.

Victoria R Béjar

Dra. Victoria Regina Béjar é médica psiquiatra e psicanalista. Membro efetivo da SBPSP, da IPA e da Associação Brasileira de Psiquiatria. É docente do Instituto Durval Marcondes e coordenadora do grupo de estudos “Expressões corporais da dor psíquica: dor corporal e psicossomática psicanalítica” da SBPSP.  Psicanalista do grupo multidisciplinar de DOR da clínica neurológica do HCFMUSP. Participou do grupo de formação em psicossomática psicanalítica no Instituto Pierre Marty, Paris.  É representante na América Latina do Grupo de Adições da International Psychoanalytical Association (IPA). Reside em Atibaia, onde atua no consultório particular e é assistente na Clínica De Dor de Atibaia. Coordena o grupo de estudos de psicanálise contemporânea de Atibaia e região.

A fecundidade do modelo Kleiniano (1882-1960)

Lídia Queiroz Silva Magnino*

Melanie Klein, uma corajosa clínica sem formação acadêmica, constrói sua obra com poderosa intuição prática trazendo desdobramentos fecundos a teoria e técnica psicanalítica, sem ignorar ou romper com Freud. Abre novos horizontes à psicanálise da criança, da psicose, do autismo, bem como aprofunda a análise de pacientes neuróticos e a analisabilidade de outras estruturas mentais, quando aponta as ansiedades psicóticas. Klein alarga o campo da psicanálise no diálogo com estética, sociologia, filosofia e política. Uma obra aberta e polissêmica.

Sua história de vida foi marcada por muitas perdas e vivências depressivas, como ser uma esposa infeliz e uma mãe deprimida. Analisada por Ferenczi e depois por Abraham, Klein se tornou a primeira mulher presidente da Sociedade de Psicanálise de Londres.

Preocupada com seu filho buscou as fontes da inibição simbólica, assim, descobriu que o parar de brincar é tão importante quanto o brincar. Constatou que a vida psíquica se orienta por afetos e que a ausência é presença de um objeto hostil.

No contato, ao atender crianças pequenas, percebeu que eram capazes de fazer transferência, sendo possível aplicar o método psicanalítico. Klein observou que o bebê é um cientista, um pesquisador nato, que testa suas fantasias inconscientes. Identificou um ego primitivo, um édipo e um superego precoce. Concluiu que falar de fantasia é falar de afeto, a partir disso cria a técnica de análise da criança.

Ela fez da psicanálise uma arte de cuidar da “capacidade de pensar”, destacando o papel central dos afetos e da dor psíquica, sendo a pulsão de morte o agente principal da simbolização. Segundo Klein, existe um pensar com emoções, em que, o afeto é o centro da vida psíquica. O afeto organizador e estruturante, dando significado ao movimento mental. Ela não dissocia o afeto do pensamento. Nós pensamos com símbolos e ele é essência da vida mental, não só representativo. O pensamento oferece uma consciência e organização de como o indivíduo se relaciona com o mundo.

Klein revoluciona a Psicanálise e o modelo de análise infantil, isentando-a de intenção pedagógica e intuindo a contínua atividade de personificação da criança, semelhante às associações livres e à mobilidade da angústia.

Ouvindo as crianças, notou a concretude e a importância dos espaços. Espaços no interior do corpo da mãe e da própria criança. A autora, então, faz uma “geografia da mente”. Um “lugar” como um “teatro da mente” onde existem presenças e acontecem fatos. Toda a vida psíquica se passa neste mundo interno, com objetos bons (gratificadores) e maus (frustradores) em relação, também, com a presença da fantasia inconsciente e das defesas conectadas a ela.

Sendo assim, o brincar da criança é trabalho; é como um fio que possibilita compreender o que se passa na sua mente.  O brincar é semelhante ao sonhar e pensar. É uma narrativa icônica que expressa suas fantasias inconscientes, sua estrutura do ego e suas identificações com os objetos.

Klein observa que a fantasia inconsciente é precoce e expressa pulsões psíquicas. Essas fantasias tem caráter de realidade e onipotência, influenciando as percepções e as relações da criança. Demonstra que o desejo de comer se torna a fantasia de ter incorporado o seio ideal que a nutre. Já o desejo de destruir, se transforma na fantasia de ter destruído o seio e ser perseguido por ele.

Para Klein, o superego é precoce, persecutório e tirânico. Ele não é uma instância monolítica, e sim, composto de uma profusão de objetos internalizados, impregnado de destrutividade e figuras internas cruéis. A criança teme as represálias da mãe contra seu corpo (ansiedades persecutórias entremeadas a sentimento de culpa e depressão). Ela observa sentimento de culpa em crianças pequenas e deduz um édipo precoce (sexto mês).

A criança nasce com um ego lábil e em desenvolvimento, sendo capaz de sentir ansiedade, elaborar mecanismos de defesa e estabelecer reações de objeto. Permeada pelas fantasias inconscientes, agrupa duas organizações psíquicas: a Posição Esquizo-Paranoide (PEP) e a Posição Depressiva (PD), cada uma com um tipo de ansiedade, mecanismos de defesas, relação de objeto e simbolismo. Uma veiculando e a outra como um balé.

Na Posição Esquizoparanoide, a ansiedade é paranoide e os mecanismos de defesa são: a cisão; a identificação projetiva (mecanismo para livrar o ego de angústias, evacuando para fora e para dentro do outro e de si mesmo); idealização e negação. Nessa posição, a relação de objeto é parcial, com imagens cindidas, sendo uma persecutória e outra idealizada. O tipo de simbolismo presente é a equação simbólica. A pessoa é vívida pela experiência, pelo imediato.

A outra organização é a Posição Depressiva em que a ansiedade é depressiva. Além das defesas da PEP, há também a reparação. Nessa posição, a relação de objeto é total, a pessoa é capaz de contextualizar a experiência, de pensar e ter memória. O sujeito é capaz de elaborar lutos e estabelecer bons objetos internos. Uma boa identificação com a mãe é a base para identificações benéficas posteriores e para estabelecer a boa relação entre os genitores. Prevalece o interesse e o amor pelo objeto, garantindo a saúde mental.

Klein dá ênfase na pesquisa do funcionamento pré-verbal e dos estados mentais primitivos onde prevalece a simultaneidade. Constrói um sistema de comunicação específico avaliando os efeitos da cisão e projeção por meio da linguagem. A linguagem é concreta, pictórica, como se fosse um “carnaval” no mundo interno, evocando imagens simples (pai mau, mãe boa), aglomeradas (papai polvo voraz), grotescas (seio dentado, venenoso, explosivo); descrevendo os objetos parciais internalizados, revelando as projeções das tendências sádico-orais sentidas como vivas dentro do corpo do bebê. Por meio de metáforas icônicamente processadas, Klein preenche as lacunas entre a simultaneidade da pré-narrativa (ainda não simbolicamente representada) e os conteúdos do universo pré-verbal (fragmentado e assustador) em potencialmente pensáveis e comunicáveis. Cria a visualização do mundo interno da PEP e PD.

As angústias primitivas, como sadismo, inveja, voracidade e as alterações nos objetos interno e externo, propõem mediação através da interpretação na transferência, abrandando as angústias e reduzindo a distância entre fantasia inconsciente e realidade externa. A interpretação torna presente o mundo interno com as distorções, os ataques, as fantasias corporais mais primitivas, abrandando a angústia de morte subjacente. O analisando se sente compreendido e aliviado.

Sendo assim, Melanie Klein modifica o modelo reconstrutivo histórico Freudiano da transferência para a atualidade, destaca as comunicações transferenciais no aqui e agora. Enfatiza a importância da firmeza do setting para permitir que as fantasias mais primitivas se manifestem através das identificações projetivas influenciando a mente do analista.

O conceito de Identificação Projetiva modifica o conceito de Transferência e Contratransferência. A projeção é dentro do objeto com um afeto. Os objetos dentro da mente oferecem um modelo corporal de funcionamento mental. O analisando evoca a estrutura do analista. A relação analista-analisando é esclarecida pela compreensão das identificações projetivas que enriquece a contratransferência, funcionando como um radar.

 

Lídia Queiroz Silva Magnino

Membro Associado da SBPSP, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Coordenadora e Docente do Curso de Especialização de Teoria Psicanalítica e Docente do Curso de Medicina da Universidade de Uberaba.

Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente! W. Shakespeare

Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente! W. Shakespeare

Carla Crepaldi de Melo Pádua*

De fora parece fácil, mas quem é dominado pelas emoções não consegue alcançar a razão e nem ser prático facilmente!

Quando dói, quando a angústia e o medo assombram, quando a tristeza e o desânimo prevalecem ou a raiva e o ódio cegam, não há palavras que consolam ou que tragam a lucidez!

Não adianta dizer para um ansioso pensar positivo e que tudo ficará bem ou para um deprimido sair da cama e olhar o lado bom da vida!

Ninguém fica mal porque quer, ninguém deseja viver no terror se preocupando a cada instante ou decide que a vida não tem mais sentido à toa!

Eu sei, é difícil e cansativo viver com alguém que está sempre aflito com algo ou entregue a tristeza!

Às vezes tudo que essa pessoa que está sofrendo precisa é de alguém que lhe escute, que não lhe traga soluções mágicas/superficiais, apenas fique do seu lado enquanto o terror não passa, que não a julgue, nem fique bravo, somente lhe dê um abraço, faça um carinho, se faça presente!

Não critique sua forma de sentir as coisas, até porque não existe jeito certo, só o que é possível! Se não consegue compreender, respeite.

Ninguém sabe como cada um sente de verdade! Porém, todo mundo sabe que ninguém quer sofrer sozinho, muito menos ser criticado por isso!

Quando a tempestade passa e a razão volta ninguém se lembra bem do que foi dito, mas nunca se esquece de quem esteve ao seu lado durante a tormenta!

Carla Crepaldi de Melo Pádua | CRP 06/107088

Aprimoramento Profissional em Psicologia Hospitalar pela FAMEMA / FUNDAP
Especialização em Psicoterapia Psicanalítica pelo NPMR em parceria com a UNIVEM
Membro Agregado do NPMR
Auxiliar da Comissão Científica do NPMR

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