Resumo: Autismo: um olhar da Psiquiatria à Psicanálise

No final de 2021, o Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica formou a aluna Silvia Cristina Correia Ribeiro que desenvolveu uma pesquisa bibliográfica acerca do autismo sob a ótica da Psiquiatria e da Psicanálise sob orientação da professora Rosa Maria Batista Dantas. A seguir, conferimos um resumo de seu trabalho.

Várias são as discussões sobre as definições apresentadas para a  compreensão do autismo, tais como os aspectos genéticos, biológicos, relacionais, ambientais, culturais; Enfim, trata-se de considerar possibilidades multicausais para as origens do Transtorno Espectro Autista (TEA). Algumas publicações referentes à psicanálise sobre o que leva ao autismo causa grandes discussões acerca de hipóteses explicativas sobre esse transtorno que em alguns momentos engloba a questão da falha do circuito pulsional, a falha na alienação com o outro e não instauração do registro simbólico, entretanto, percebemos que não há uma única explicação a respeito do autismo. O que identificamos em comum entre elas é a existência de alguma falha ou de algo que não se efetiva na constituição psíquica da pessoa autista, porém há a observação de  uma causalidade significante produzida pela linguagem.

Na definição do conceito do autismo pela psiquiatria realizada pelo guia de classificação diagnóstica de transtornos, o último Manual de Saúde Mental (DSM 5), passou a integrar todos os transtornos do neurodesenvolvimento, fundindo-se em uma única classificação, o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Para psiquiatria as características essenciais do transtorno do espectro autista são prejuízos persistentes na comunicação social recíproca e na interação social e padrões restritos de comportamento. O estágio em que o período funcional fica evidente irá variar de acordo com as características do individuo e de seu ambiente.

Os déficits na reciprocidade socioemocional estão claramente evidentes em crianças pequenas com transtorno, que podem apresentar pequena ou nenhuma capacidade de iniciar interações sociais e de compartilhar emoções, caso tenha linguagem, costuma ser unilateral, sem reciprocidade social, usada mais para solicitar ou rotular do que para comentar, compartilhar sentimentos ou conversar.

Pelo olhar da psicanálise há alguns conhecimentos sobre o autismo.

Para Francis Tustin “os fenômenos autísticos caracterizam-se pela presença de um estado de “recolhimento emocional” no interior de uma concha protetora, autogerada. O self retira-se do contato afetivo com o objeto com o intuito de evitar vivências dolorosas que lhe acarretariam uma sensação de desagregação e vulnerabilidade intoleráveis. Os estados autísticos manifestam-se principalmente em indivíduos que apresentam sensibilidade extrema e uma autossensualidade exacerbada. Para tais indivíduos, a consciência da separação do objeto deu-se de maneira abrupta, sem que tivessem recursos para suportá-la. Essa separação seria vivida como se parte de seu próprio corpo tivessem sido arrancadas, acarretando experiências de aniquilamento, de buracos internos, de buracos negros.”

No entanto, Melanie Klein explicava o autismo levando em conta a inibição do desenvolvimento constitucional do bebê, o qual em combinação com as defesas primitivas levava a uma inibição do desenvolvimento do ego, a uma pobreza de vocabulário e também a uma dificuldade para realizações intelectuais, não apresentação de sinal de adaptação à realidade, nem de estabelecimento de relações emocionais com o ambiente, não expressão de afeto, não há reconhecimento nenhum do outro e raramente algum tipo de ansiedade. Apresentam movimentos descoordenados, expressões de olhos e rosto fixos. Essas crianças apresentam um fracasso das etapas iniciais dificultando a formação de símbolos, tornando-as imobilizadas, isoladas, sem relação com a realidade.

Ao pesquisar o DSMs, pode-se verificar que as classificações descritas nos manuais diagnósticos, constituem-se, no nível da fenomenologia, naquilo que se observa dos chamados sintomas, dentro do modelo médico.

A psicanálise vê o autismo como uma forma de estar no mundo, é um espectro no qual encontramos diversos graus que variam de leve, moderados e graves, considerando que os autistas têm dificuldades importantes em lidar com o mundo, seja no sentido amplo ou estrito e que suas famílias estão completamente envolvidas nestas dificuldades. São crianças que precisam de ajuda para saírem de seus mundos fechados, de sua concha protetora e encontrarem soluções próprias para estabelecerem algum nível de relação com o exterior. Alguns desses pacientes que apresentam estados autísticos comunicam–se predominantemente de forma não verbal, sobretudo da autossensualidade.

O trabalho completo pode ser consultado na Biblioteca “Alfredo Menotti Colucci” do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região. Agende sua visita! Para mais informações: biblionpmr@gmail.com ou (14) 3413-3307 – (14) 99614-6782.

 

RIBEIRO, Silvia Cristina Correia. Autismo: um olhar da psiquiatria à psicanálise. 2021. 25 f. Monografia (Especialização) – Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica, Núcleo de Psicanálise de Marília e Região, Marília, 2021.

Silvia Cristina Correia Ribeiro CRP 06/ 103686

Psicóloga pela Fadap – FAP
Formação em Psicoterapia Psicanalítica NPMR
Membro Agregado NPMR
Psicóloga Clínica

Crônicas de Rubem Braga e Machado de Assis

Um braço de mulher – Crônica de Rubem Braga

Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que “nós não podemos descer!”. O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.

Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.

Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — “o senhor” — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.

Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.

A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.

O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.

Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.

E de repente me veio a ideia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro – e de que eu podia morrer.

Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.

Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.

A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando 0 encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.

Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a ideia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.

Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. “Ora, não senhor.” Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho – que devia permanecer um estranho.

Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.

Uns Braços – de Machado de Assis

Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Uns Braços

INÁCIO ESTREMECEU, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco. — Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco! — Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos..

Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura! D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens. Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado. Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga. Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dous, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória. — Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.

Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.

“Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo daqui e não volto mais.” Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços. Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.

— Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
— Não tenho nada.
— Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos . . .
E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: — vadio, e o covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.

D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realrnente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer. Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposção, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das cousas.

Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

— Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias. Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavamlhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.

D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.

A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era.

Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal. Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços. É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas.

Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal. Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude. D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela.

Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dous, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. “Uma criança!” disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos. “Uma criança!” E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, — dormir e talvez sonhar. Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse.

Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinavase, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca. Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deulhe um calefrio. Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:

— Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me.
— Sim, senhor. A Sra. D. Severina. . .
— Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela. Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente. . .

Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algurn olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos… Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana: E foi um sonho! um simples sonho!

Nota de Repúdio

Aos membros do NPMR e à comunidade em geral,

Encaminhamos a todos Nota da FEBRAPSI, que recebemos da Soc. Bras. de Psicanálise de SP (SBPSP), de Repúdio e Pesar aos terríveis acontecimentos, ocorridos na semana passada no Rio de Janeiro, e que consternam e entristecem todos nós.

Cibele de Baptista Brandão.
Presidente do NPMR

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Oficialmente, em 22 de abril de 1500 o Brasil foi descoberto. Nas leituras mais modernas se diz que fora invadido, pois como é sabido, havia por aqui uma população com organização social e cultural muito bem estabelecidas; foram capturados, mortos ou escravizados. Uma vez que a exploração progredia no território e os indígenas restantes eram poucos para a mão de obra, toma-se a decisão de expansão através do tráfico negreiro. O continente africano, já desenvolvido em suas tecnologias e organização política, mas frágil em sua defesa, começa a ser terreno fácil e “reservatório humano apropriado, com um mínimo de gastos e de riscos. Assim, o tráfico moderno dos escravizados negros tornou-se uma necessidade econômica […]. Em novas relações técnicas estendem ao plano social o binômio senhor-escravo” (Kabengele Munanga, 2020).

Preâmbulo um tanto longo para a manifestação de repúdio contra o bárbaro assassinato do congolês Moïse Kabagambe e, logo em seguida, de Durval Teófilo Filho. Ambos tombaram mortos, um espancado covarde e selvagemente por três homens, tendo os pés e as mãos amarrados como faziam os colonizadores com os homens africanos escravizados; o outro, assassinado por um vizinho que o confundiu com um bandido.

O que há em comum entre estes dois crimes e entre as centenas de assassinatos de jovens negros que morrem todos os dias? O Racismo Estrutural − herança maldita do Brasil colonial.   

A Federação Brasileira de Psicanálise se une a inúmeras instituições da sociedade civil para manifestar sua profunda indignação diante de acontecimentos cotidianos que dizimam famílias, destroem futuros e que deixam um rastro de vazio, luto e tristeza em uma população que assiste, aterrorizada, aos atos movidos pela compulsão a repetição e, que atualizam sistematicamente a construção de relações baseadas na hierarquização dos corpos e das vidas de nossos cidadãos. O passado se faz presente e se repete de maneira mortífera na falta de elaboração de nossas relações fundantes e sombrias. Aos familiares e amigos do jovem Moïse e de Durval, em nome da comunidade psicanalítica, nossos mais sinceros sentimentos. Entristece-nos e envergonha-nos que estes crimes perdurem através dos tempos sem justiça ou reparação. 

Rio de Janeiro, 7 de fevereiro de 2022

 

Cibele Di Battista Brandão
Psicanalista – Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), membro do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região (NPMR) e docente dessas instituições. Atualmente é Secretária Geral do 
Instituto Durval Marcondes da  da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Mensagem da SBPSP

Aos Membros da SBPSP e Membros Filiados ao Instituto de Psicanálise.

Em sintonia com diversos movimentos atuais, tanto de políticas públicas quanto da iniciativa privada, a SBPSP vem instituindo, em 2021, o Projeto Virgínia Bicudo, contra discriminações raciais, étnicas e sociais, e a favor da acessibilidade à formação psicanalítica, no Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, para populações negras, indígenas e outras historicamente alijadas de espaços como este. A produção deste vídeo, marcando o Dia Nacional da Consciência Negra, foi uma primeira ação deste Projeto, que está sendo cuidadosamente pensado e  desenvolvido por nossa instituição.

Confira: https://www.youtube.com/watch?v=rM4C8WgQNog

Atenciosamente,
Comissão do Projeto Virgínia Bicudo

Filme: Quadro Minutos

Adriana Maria Nagalli

Experiências emocionais se dão todo tempo e as mais dolorosas geralmente estão relacionadas à perda de alguém que amamos, pelo desmoronamento de um ideal, pela vergonha e culpa pela destruição da própria humanidade e da do outro.

O sofrimento das protagonistas, para mim não há coadjuvantes, é fruto de   verdadeiros desastres que atingem a alma, que são extremamente dolorosos e desgastam o espírito humano.

Porém, de repente, o acaso promove o encontro que gera uma oportunidade para que mesmo sem um projeto de vida para ambas, encontrem algo. O que? A verdade da própria existência?

Dores transbordam:


Jenny não quer a imitação ou a submissão e  carrega um  terror ao contato, proveniente de muitas violências que cometeram com sua integridade física e mental.

Traude se ocupa em repetir que não se interessa por Jenny e sim pela música. Isso, penso, para manter a todo custo o não envolvimento, uma maneira de evadir-se da dor. Sua jura de amor único e eterno por seu amor -Hanna- que foi assassinada pelos Nazistas (por ser comunista), imprimi nela um componente culposo que também a mantém prisioneira no espaço e no tempo.

Morte em vida.

Jenny e Traude:

O instrumento que possibilita o ato de compreensão é a experiência de similaridade, ou seja, uma experiência onde um está em sintonia com o outro.

Para isso necessariamente a diferença se faz presente, porém, algo similar permite que ocorra uma centelha de conexão. Para compreender o sentimento do outro, busco um paralelo dentro da minha própria experiência. No momento da compreensão, eu e o outro somos um, pela união obtida, pela reciprocidade da experiência e isso pode ser captado inconscientemente, são vozes silenciosas, que captamos quando estamos privados dos elementos externos que podem nos distrair.

Esses elementos externos, penso que tem relação com o que São João da Cruz escreveu em 1542, quando se encontrava preso por buscar a reforma na Ordem Carmelita. Ele foi um menino que nasceu muito pobre, crescendo misturado aos rostos magros e aos corpos frágeis de outros meninos que brincavam nas ruas da Espanha e alçou voo em si mesmo. Torturado, preso e debilitado, lembra a personagem Jenny, mas encontrou sua liberdade no vazio dos elementos externos:

“Para vir a saborear Tudo- não queiras ter gosto em Nada

Para vir a possuir Tudo- não queiras saber algo em Nada

Para vir a possuir Tudo- não queiras possuir algo em Nada

 

E quando venhas de todo a ter – há de tê-lo sem nada querer

Nesta desnudez encontra o espírito, o seu descanso,

Pois nada cobiçando, nada o impele para cima e nada o oprime para baixo

Porque está no Centro de sua humildade”

                                            São João da Cruz

A perda e o trauma podem levar a uma união solidaria através de uma ligação que se dá pela escuta das vozes pré-natais e primitivas.

Numa fagulha momentânea, tendo o piano (música) como objeto de ligação a experiência de Traude e de Jenny se deu em meio à intensidade conjuntas.

MÚSICA

Traude, sofrida e aprisionada pela dor, vendo que Jenny foi maltratada pela vida, recebe essa história calorosamente devido à sintonia, à similaridade e às experiências desumanizantes que viveu no regime hitlerista, permanecendo naquele lugar de dor e castigo.

Considero então que ambas, presas por questões diferentes, puderam criar um acesso uma à outra. Esse acesso à experiência profunda requer suportar o choque com o trauma do outro que destrava a barreira de concreto que as protegiam contra a entrada das emoções.

A experiência com o outro tem essa força em si.

 

Reparação e restauração

Como se abrir para a humanidade compartilhada e renunciar a um pertencimento superficial em favor de restaurar e reparar nossos objetos internos imersos numa profunda dor?

Pertencer é uma necessidade humana básica, principalmente pertencer a si mesmo, apaziguando os terrores internos.

Traude busca desesperadamente pelo talento de Jenny, que um dia viu em Hanna. Precisa ver o sucesso de Jenny como se ao ouvi-la adormecesse num sono- sonho profundo com Hanna, que agora tem a chance de realizar.

Melanie Klein acreditou que os seres humanos experimentam seu mundo desde a mais tenra infância porque para ela os bebês já nascem com alma.

Buscamos, a partir daí e na vida toda, palavras que correspondam às imagens que criamos tão precocemente e que correspondam também ao nosso espírito criativo interno que está em sintonia com essas emoções.

A música, para quem não pode falar ou não consegue falar e não encontra palavras é a única oportunidade possível.

Um artista fala através de sua arte.

Traude e Jenny falavam de sua dor através da música. A dor pela morte de seus amados (bebê de Jenny e Hanna), não foi reconhecida por ninguém.

Essas mortes não foram compartilhadas, elaboradas e reconhecidas como importantes. O luto é melhor elaborado na compaixão, porém, elas sofreram sozinhas esse desastre.

O luto nos coloca diretamente em contato com o pavor ao desconhecido, a realidade da incompletude, o vazio profundamente doloroso, porém, se alguém puder nos acompanhar, passamos por essa encruzilhada.

E quando nos apropriamos disso, da inevitável solidão, quando damos atenção a isso, as ligações podem deixar de ser de superfície para superfície e passam a ser de interior para interior e novas emoções são criadas.

E quem sabe podemos aprender com elas.

Para Jenny, a música é explosão, improvisação, swing e ritmos não lineares. Expressa sua raiva, fúria, revolta, transgressão, força e existência.

Um potencial criativo, ou como tenho sonhado, uma espécie de pré-concepção estética em Jenny, passa a ser banhada por algo que pode promover uma pequena realização de suas dotações. Sendo ela mesma.

Enquanto a fúria acompanha Jenny, para que ela sobreviva, Traude mantém a formalidade e distância ao pedir a reverencia para uma criança.

Ambas viveram a experiência de serem descartadas, jogadas de seu aquário janela abaixo (cena do filme), envoltas com enforcamentos e morte.

Há uma comunicação entre as partes de dentro de Jenny e de Traude, a relação interna de uma com a outra é o que rega as sementes em cada uma porque ao longo do filme percebemos em ambas que partes não desenvolvidas, sofridas, partes internas estão se comunicando.

Porém, antes disso, desconectadas de outros fatores da personalidade de ambas viviam como um relógio quebrado em pedaços na bancada do relojoeiro, mas quando cada parte é montada na relação correta com as outras, cada qual tem sua função. As partes estão integradas.

Os dados brutos das duas aguardam por uma transformação e um período de intensa turbulência se deu para que alguns elementos inertes ou mortos, se tornassem sua própria subjetividade.

Subjetivo é o Eu em Mim. O eu que foi comunicado a si mesmo.

O auge do desenvolvimento humano é alcançado quando a subjetividade do indivíduo orienta suas percepções.

Expressar a dor faz derramar, internamente, alguma luz.

Uma luz em uma criança interna que poderá ser nutrida por sua própria criatividade. Vinculando-se com amor e ódio, de um beijo pueril ao soco, demonstra o  grito de um coração que não suporta mais a dor. Ação.

 

Dor e turbulência na clínica psicanalítica:

Dr Cecil Rezze, em seu livro “Psicanálise- De Bion ao Prazer Autêntico”, nos oferece importantes reflexões. Sua generosidade ajudou-me nas conclusões a seguir. Algo mais aprofundado verão no livro.

“E o que é a psicanalise senão a oportunidade para que nasça o que nunca nasceu, que se crie o que nunca foi criado ou que surja algo do cliente que possa lhe permitir ter prazer ou satisfação na existência.”(Rezze, 2014)

Se os analisandos também vêm à procura de que suas reais qualidades e recursos sejam desenvolvidos, será que o analista desenvolveu seus recursos para conviver dentro da atividade criativa do cliente?

Bion, em Domesticando pensamentos selvagens, denomina as emoções selvagens como uma força animal a ser domada e as compara com a de um tigre. Um risco factual de se enfrentar um pensamento selvagem equivale a enfrentar um tigre. Há algo de selvagem no animal humano que pode colocar nossa vida em risco. Ele considera que há uma situação igualmente perigosa que é lidar com a alma, com o espírito e com a mente, quando as emoções são selvagens, porém destaca a importância do pensamento selvagem, possivelmente como fonte original da criatividade. Assim, o autêntico pode ser experimentado.

Caso clínico publicado

Resumo:

Após uma sessão participativa e colaborativa, o analisando inicia a sessão num clima de bem-estar e conforto.

São feitos movimentos e afetos que sugeriam uma aproximação bastante amorosa.

O analista fala desse clima amoroso e o analisando pega uma manta que o analista deixa a disposição dos analisandos. O analista nota que a manta cobre os sapatos do analisando, o que lhe causa estranheza, mas permanece em silêncio.

O clima se mante leve e o analista decide fazer um comentário sobre o analisando aceitar a manta e poder cobrir-se. Em seguida, o clima emocional muda drasticamente e o analisando diz que o cheiro daquela manta é muito ruim, que estava com cheiro de merda. A violência e o tom vão aumentando até que o analisando diz que o analista quer torná-lo uma merda.

Fica enfurecido, diz que o analista quer torná-lo uma merda, levanta e sai.

A ação tornou-se necessária.

A experiência faz o analista refletir que o analisando captou alguma idiossincrasia na qual se apoia para fazer a viragem de sentimentos. Que se o analista suportar a intensidade da convivência, essa pessoa poderá iluminar aspectos do analista a que o analisando tem acesso e ele não. E nele também.

O analista diz que certamente a vivência foi como um raio que tudo ilumina numa noite escura.

A questão é ver na violência uma experiência de intensa dor.

Adriana Maria Nagalli de Oliveira

Psicanalista, Membro Efetivo da SBPSP e do Grupo de Estudo de Campinas (GEP).

Como trabalha o Analista na Contemporaneidade?

Cibele M. M. Di Battista Brandão*

O objetivo na análise, atualmente vai muito além da resolução de conflitos ou da diminuição da sintomatologia. Isso é importante, mas em primeiro lugar o que é trabalhado, é desenvolver o sentir-se vivo, diminuir a desvitalização que ronda os dias dos pacientes. A tentativa é desenvolver essa capacidade de sentir-se vivo que é uma experiência superior e prioritária e deve ser considerada como um aspecto da experiência analítica em si mesma.

Atualmente sobre qualquer coisa que iremos falar temos que citar a total mudança que em tudo se fez em função da pandemia. No campo da Psicanálise não é diferente. Praticamente de um dia para o outro, tivemos que mudar nossa prática para continuarmos respondendo às demandas que sempre tivemos e que agora com o advento de toda a ameaça desencadeada pelo perigo de contágio da Covid-19 quantas coisas passaram a se somar as já muitas tarefas existentes! Isso sem contar a grande demanda que agora existe em função do aparecimento de muitas situações que solicitam a presença de um analista. Tanto de pessoas que estavam assustadas, inseguras e ameaçadas, como de pessoas que passaram a adoecer, apresentar sinais psicopatológicos e a urgência de serem atendidas se fez necessária. Tornou-se lugar comum os colegas dizerem: – Mesmo com o isolamento, nunca trabalhei tanto em minha vida. Somado a isso, a necessidade de rapidamente aprender dominar as áreas de informática, para dar aulas, fazer reuniões, dar palestras e naturalmente também atendermos nossos pacientes primordialmente on-line. Passamos viver uma outra realidade. Melhor? Pior? Não sabemos. É diferente. É necessária.

Como trabalha o psicanalista na contemporaneidade? Percebo que para falar sobre essa questão que é muito ampla devo escolher um aspecto. Por quê? A atividade e inserção da Psicanálise hoje é muito ampla – Na Educação, na Saúde, na Vida Comunitária. Escolho falar de um consultório de Psicanálise onde são atendidas pessoas que vêm movidas por uma angústia e sofrimento emocional intenso.

Uma pessoa consulta um psicanalista porque está sofrendo. Emocionalmente, sem saber ela tornou-se incapaz de sonhar. À medida que é incapaz de sonhar sua experiência emocional ela é incapaz de mudar, ou de crescer ou torna-se diferente de quem ela tem sido.

A pergunta que pode ser feita em qualquer idade –

– O que você quer ser quando crescer? Traz a ideia de sonho, de projeto de vida. E ela pode ser feita para pessoas a qualquer momento. Pode ser um aspecto dentro da análise em que o analista tenta colocar essa pessoa em contato com seus sonhos novamente.

A pergunta é talvez a mais importante que qualquer um de nós pode fazer ao longo da vida, isto é, desde muito cedo, até o momento antes de morrer. Quem gostaríamos de nos tornar?

O analista pode trabalhar com seu paciente fazendo com que ele volte a sentir entusiasmo para se tornar a pessoa que ele havia sonhado ser.

Que tipo de pessoa gostaríamos de ser? De que maneiras não somos quem somos?

O que nos impede de sermos mais como a pessoa que gostaríamos de ser? O que poderíamos fazer para nos tornarmos mais como as pessoas que sentimos ter potencial e a responsabilidade de ser? São essas as perguntas que trazem a maioria dos pacientes às terapias e as análises embora raramente se deem conta disso, estando mais preocupados em encontrar algum alívio para os seus sintomas. Ás vezes o objetivo do tratamento é conduzir o paciente de um estado em que não é capaz de formular essas perguntas para outro no qual seja capaz de fazê-lo. Muitas vezes no início da análise a pessoa venha mesmo mais com sua desilusão diante da vida. E aí ela pode se perguntar o que quero para mim?

Na psicanálise ontológica – onde se busca o ser, o vir a ser, vemos a dupla analítica – Analista e analisando descobrindo sentidos de maneira criativa num processo que nos torne mais vivos. A dupla que é formada entre analista e analisando ajuda a pessoa se reconectar com seus desejos de realização e transformação diante da vida. O que quero ser quando crescer? (Ogden, 2020).

O acontecimento passado, ocorrido, mas não vivenciado, continua a atormentar o paciente até ser vivido no presente (com a mãe/analista). E, no entanto, parece-me que uma das principais, se não a principal motivação para um indivíduo que não tenha vivenciado partes importantes do que aconteceu no início de sua vida, é poder resgatar partes importantes perdidas de si mesmo, para finalmente se completar englobando, tanto quanto for capaz grande parte de sua vida não vivida. Toda pessoa tem necessidade de recuperar o que perdeu de si mesma. Ela quer tornar-se a pessoa que ela é em potencial. Todos nós em diferentes proporções tivemos acontecimentos no início das nossas vidas que envolveram rupturas significativas do vínculo mãe-bebê, aos quais respondemos com organizações defensivas psicóticas. Cada um de nós tem a dolorosa  consciência  de que apesar de podermos parecer psicologicamente saudáveis para os outros (e as vezes para nós mesmos) há formas essenciais em que não somos capazes de estar vivos para nossa experiência, seja a experiência da alegria, ou a capacidade de amar, a capacidade de perdoar alguém (inclusive nós mesmos) ou simplesmente  para se sentir vivo para o mundo ao nosso redor e dentro de nós mesmos – Todos temos nossas próprias áreas especificas de experiência que fomos incapazes de viver e vivemos em busca dessas experiências perdidas que fomos incapazes de viver.

Roosevelt Cassorla diz em uma publicação do último Jornal de Psicanálise:

Ser psicanalista é fascinante. Temos o privilégio de sermos desafiados todo o tempo, a dar sentido a tantas vidas (e também à nossa). E isso nunca termina. (Para quem escolhe esse caminho) que você possa usufruir de tudo o que a formação analítica te oferece. (Cassorla, 2020, p. 133)

Referências:
Cassorla, R. (2020). Meu caro candidato… Jornal de Psicanálise, 53(99), 129-134.
Ogden, T. H. (2016). O medo do colapso e a vida não vivida.  Livro Anual de Psicanálise, 30(1), 77-93.
Ogden, T. H. (2020). Psicanálise ontológica ou “O que você quer ser quando crescer?”. Revista Brasileira de Psicanálise, 54(1), 23-46.

Cibele M. M. Di Battista Brandão

Psicanalista – Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), membro do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região (NPMR) e docente dessas instituições. Secretária Geral do Instituto Durval Marcondes da SBPSP nas gestões 2017-2018 e 2019 – 2020. Atualmente é Presidente do NPMR.

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